sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Não pirata ou não-pirata?

1) Um leitor indaga qual a forma correta:

I) "Cópia não-pirata";

II) "Cópia não pirata"?

2) Até pouco tempo atrás, o não, quando tinha a atribuição de prefixo negativo, podia, em alguns casos e observadas determinadas circunstâncias, anexar-se por hífen a um adjetivo ou substantivo e formar um outro vocábulo.

3) Independentemente, porém, de aprofundamento maior nessa observação, deve-se anotar que o Acordo Ortográfico de 2008, ao regrar o assunto, especificou os casos em que se emprega o hífen nas palavras que tenham prefixos ou falsos prefixos, mas nesse rol não incluiu o não.

4) Isso quer dizer, em suma, que, como regra, não mais se usa o hífen, quando se quer negar uma palavra, dizendo o seu contrário pela anteposição de um não. Ernani Terra e José de Nicola dizem que não se usa o hífen com as palavras não e quase com função prefixal: não agressão, não beligerante, não fumante, não violência, não participação, quase delito, quase irmão.

5) De modo específico para o caso da consulta, responda-se: o correto é cópia não pirata, e não cópia não-pirata.

6) O próprio Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, em sua primeira edição após o Acordo Ortográfico, ao listar diversos vocábulos precedidos de não, em casos similares ao da consulta, registra-os sem hífen: não agressão, não cooperação, não cumprimento, não esperado, não execução, não ficção, não fumante, não governamental, não ligado, não pagamento, não proliferação, não sei quê, não violência.1

7) Sempre é oportuno lembrar que o VOLP é editado pela Academia Brasileira de Letras, a qual tem a delegação oficial e a responsabilidade legal de editá-lo, em cumprimento à Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8/12/1900.

8) E sua função é, com força de lei, listar as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa; de um modo geral, não lhes indica o sentido; todavia, além da grafia oficial, fornece a pronúncia dos casos duvidosos.

9) Seguem alguns exemplos de dispositivos legais enquadrados no caso vertente, originalmente grafados com hífen, mas aqui já atualizados pelas regras do Acordo Ortográfico de 2008, os quais, quando citados, deverão, doravante, ser corrigidos pela eliminação do hífen:

I) "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ... IV – não intervenção" (CF, art. 4º, IV);

II) "O imposto previsto no inciso IV: ... II - será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores" (CF, art. 153, § 3º, II);

III) "O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente" (CF, art. 208, § 2º);

IV) "Se não for possível nem conveniente a divisão de todos os bens em natureza, calcular-se-á o valor de alguns ou de todos para reposição em dinheiro ao cônjuge não proprietário" (CC, art. 1.684);

V) "Compete ao credor, dentro de 10 (dez) dias, contados da data em que foi intimado do arresto a que se refere o parágrafo único do artigo anterior, requerer a citação por edital do devedor. Findo o prazo do edital, terá o devedor o prazo a que se refere o art. 652, convertendo-se o arresto em penhora em caso de não pagamento" (CPC, art. 654);

VI) "A pena será ainda agravada em relação ao agente que: ... III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal" (CP, art. 62, III);

VII) "As testemunhas comunicarão ao juiz, dentro de um ano, qualquer mudança de residência, sujeitando-se, pela simples omissão, às penas do não comparecimento" (CPP, art. 224);

VIII) "Comprovada a falsa alegação do motivo de força maior, é garantida a reintegração aos empregados estáveis, e aos não estáveis o complemento da indenização já percebida, assegurado a ambos o pagamento da remuneração atrasada" (CLT, art. 504).

10) Importa esclarecer, por fim, que, ao tratar desse assunto, em Nota Explicativa, a "Comissão de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras", qualificando de "sintético e enxuto o texto oficial do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa", após proceder a uma minuciosa análise de suas bases, decidiu por diversas medidas, dentre as quais, "excluir o emprego do hífen nos casos em que as palavras não e quase funcionam como prefixos: não agressão, não fumante, quase delito, quase irmão."

11) Por outro lado, contudo, aditou excerto que requer atenção: "Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o uso permitir. É recurso a que se socorrem muitas línguas. Deste não hifenizado se serviram no alemão Fichte e Hegel para exercer importante função significativa nas respectivas terminologias filosóficas: nicht-sein e nicht-ich, de que outros idiomas europeus se apropriaram como calcos linguísticos".

12) E a indagação que surge do trecho citado é se nessa observação reside um permissivo lançado pela própria ABL para justificar a manutenção do hífen em qualquer das expressões referidas, de modo a justificar não-intervenção, não-cumulativo, não-oferecimento, não-proprietário, não-pagamento, não-punível, não-cumprimento, não-estáveis.

13) Ora, essa questão precisa ser posta nos seguintes termos:

I) o Acordo Ortográfico, em texto claro e sem exceções, eliminou o hífen das palavras formadas com não;

II) como regra, assim, não há casos especiais outros de permissão para seu emprego;

III) o filósofo alemão Fichte, ao tratar dos componentes da percepção do mundo, precisou lançar em oposição dois princípios teóricos absolutos (ich e nicht-ich, ou seja, eu e não-eu);

IV) de igual modo, Hegel, outro filósofo e também alemão, recusando a fixação dos opostos e buscando a conciliação entre eles, dizendo que negar simplesmente um termo nada produzia de determinado, precisou, para explicitar seu método dialético, contrapor pares conceituais (como sein e nicht-sein, vale dizer, ser e não-ser);

V) a extrema especificidade em que empregado o não hifenizado evidencia seu caráter de excepcionalidade total no emprego feito por ambos os filósofos;

VI) isso quer dizer que simplesmente não está ao talante do usuário que escreve algo que ache importante, que venha, a todo instante, a usar o hífen em tais circunstâncias;

VII) a própria Nota Explicativa reforça essa tese, ao complementar que esse "não é, portanto, recurso para ser banalizado".

14) Desse modo, em termos práticos, continua valendo tudo o que anteriormente se disse, de modo que, no excerto da Nota Explicativa não reside permissivo algum para justificar a manutenção do hífen em qualquer das expressões referidas na legislação, e, assim, devem ser elas grafadas doravante do seguinte modo: não intervenção, não cumulativo, não oferecimento, não proprietário, não pagamento, não punível, não cumprimento, não estáveis.

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